sábado, 14 de março de 2015

Nessa porra toda

Ninguém me disse que ia ser fácil. Cheguei meio atrapalhado, quando vi estava aqui. Com muita saudade, tanto aperto nesse coração. Quanta coisa vai e vem, quantas pessoas cruzando o caminho. Tudo tão intenso. A solidão, o vazio e a eterna indefinição dessa vida. Pecado e prazer, baby.

Foi assim que vim ao mundo. Agora a gente tenta tocar a superficíe dessa coisa que é existir. Quanto desabafo falta no mundo. Que sons estranhos vindos das entranhas.

de um lado do travesseiro o frio, do outro um calor intenso.

quanta vida, quanto espanto nisso tudo. quem somos nós nessa porra toda?

Saudade: quero ver pra crer

Bateu aquela saudade. Aquela. Aquela, sabe? Aquela...
De pouquíssimas pessoas que tocaram o coração.
Amores.
Amizades.
e o mundo se divide. as pessoas vão embora...
as músicas bonitas, as conversas, o jeito.
Nunca, nunca. a vida mata, mata, do coração.

domingo, 18 de janeiro de 2015

travessinhado travessei

o tempo passou
as crianças cresceram
os adolescentes se tornaram adultos
os velhos morreram
e os bebês nasceram

o tempo passou
há mais dúvidas
há mais certezas
há mais medos
há mais serenidade

passou
Leminski não escreve mais
Renato Russo cada vez mais sumido
Guevara só nas raras estampas de camisetas
Lennon só nas versões de outras bandas
Onde?

passou
mais barriga, mais vícios, mais dívidas
menos deslumbramento, menos esperança, menos desespero
mais sexo, mais repetições, mais canções
menos rivalidade, menos dinheiro, menos coragem
mais ou menos?

o tempo passou
mudei de cidade, mudei os planos, mudei de partido
os casais se apaixonaram outra vez, comprei um cão
escrevi o nome dos amigos na parede mais próxima
agora quero uma bicicleta e uma vida inteira pela frente

nada será como antes.
o tempo, simplesmente passou.
na cidade, no coração dos homens e das mulheres, nos corpos dos animais domésticos.

as ruas mudaram de nomes
os bares mudaram de preço
as casas mudram de donos

as estradas são agora feitas de sonhos
os campos de futebol são feitos de gravatas
agora
as serenatas são feitas de microprocessadores

era preciso sentir a dor do poeta, aquele que finje que sente o que não sente
finjimos a dor, finjimos entender, finjimos suportar
finjimos, finjimos que o tempo passou.

mas o coração bem grande; ficou.
é melhor pelo amor do que pela dor.
canta. canta o samba do juiz
canta pra todo mundo que o tempo passou
conta a boa nova.

não esquece o amor antigo,
não esquece dos prejuízos,
das pessoas que foram embora,
dos amigos que sumiram,
da mãe, do irmão, do pai, da prima, da tia, do cunhado, do amante, travesseiro.

carinho não tem nação, nem razão, nem dia, nem noite, nem hora.
mas o tempo passou.
só o carinho sobrevive ao tempo;
e dá prazer olhar sempre de um novo ângulo.

e os gatos sobem no telhado
e o verão machuca
e Deus dá umas dicas
e o Silvio Santos ainda está vivo.

Só que o tempo passou. No Brasil também.
Não te contaram?
É... Passou. Mas ficou.

Nada demais; durma bem pois amanhã o dia é longo.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

quando um de nós cai

"Eu era alegre como um rio,
um bicho, um bando de pardais;
Como um galo, quando havia...
quando havia galos, noites e quintais.
Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
o mal que a força sempre faz.
Não sou feliz, mas não sou mudo:
hoje eu canto muito mais"

Belchior - Galos, noites e quintais | Coração Selvagem


E aí, Chico!? Levanta daí, amigo. Cadê você tocando violão, escrevendo e recitando poesia, mostrando música nova ou comentando a leitura de mais um autor da filosofia? Cadê a tua meditação silenciosa no quarto, o incenso, a canga de Shiva, o cobertor enrolado no corpo? Os planos, as viagens astrais e geográficas? Aquela comida que você fazia lotada de curry com tudo misturado? O jeito como você sorria, como você cantava? A tua dança... Chico!! Levanta daí, rapaz, que a gente tá te esperando pro Sarau. Vai logo, Chico! Cadê teus livros, tuas cuecas samba-canção? Cadê, Chico? E o meu maior desespero nessa segunda de manhã em Ribeirão Preto foi saber que você não ia se levantar, meu amigo. Você não ia uma vez mais dizer que a política não vale a pena; que é outra história. A gente não vai terminar a leitura de Assim falava Zaratustra juntos.

Quando um de nós cai... A gente se pergunta quem será o próximo. Se pergunta o que foi que aconteceu? Como aconteceu? Por que? O que sobra de nós? Fica o sentimento de que alguma coisa está escorrendo pra lá e pra cá entre todo mundo e as paredes não revelam. O que é essa tristeza que nos acomete, o que fazemos pra superar? Qual é a bendita razão de estar aqui?


O Chico me falava dos seus amores. A Kim, a Natana, a Carol, a Luana. 2011! Que ano foi aquele!? Ele não sabia o que querida do amor, como todos nós. Não soube fazer os amores durarem, não conseguiu ficar com alguém por muito tempo desde que nos conhecemos. Mas sabia se desprender, sabia seguir seu próprio curso. Ensinou, aprendeu e marcou pra sempre a minha vida e a vida das suas paixões.

Quando um de nós cai... Fica o vazio, o desamparo, o desterro. Essa guerra da pessoa no mundo tentando governar a si mesmo. Tentando escapar de uma brecha, uma cilada e seguir em frente. Tocar a vida! São só palavras, o Chico diria. Universo? Fé? Deus? Dor? Ele me mostrou a espiritualidade, mostrou o Osho, o Prem Baba, o conhecimento de si. Eu acabei ficando com o cuidado de si e os pós-estruturalistas. Nenhum de nós chegou a nenhuma explicação e ficamos fatalmente separados pela política.


Mas o Chico também falava do trabalho. Não gostava muito, acho, como eu. Nunca se encontrou, como eu. Ele tentava fazer entrevistas, procurava coisas, fazia trabalho braçal. E a gente cozinhava muito macarrão muitas vezes como em toda república de estudante universitário. Ele conseguiu ser expulso de um estágio "voluntário" (huahuahua). O Chico é uma figura. Um gênio. E que gênio ele tinha. Desaparecia do nada, as vezes não queria conversar. As vezes acordava de manhã ou me interpelava no meio da madrugada perguntado algo do tipo: "você acha que o ódio pode fazer alguém amar?". E eu sempre precisava entender primeiro o que ele tava querendo saber. E as vezes em que eu chegava do rolê às 5h da manhã e ele tava lá lendo Nietzsche; A Gaia Ciência, Ecce Homo, O Anticristo.

Quando um de nós cai... A porra da universidade continua. Com seus malditos interesses ridículos e a maldita ordem e a maldita reposição de aulas continua como já disse outro amigo. Continuam os vilões, os professores que se vendem, que controlam, que confundem, que misturam, que articulam por trás. Continua também a nossa terrível ausência estudantil. Continua a falta de vida da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. A gente continua medíocre. Coisa que nem eu e nem o Chico queríamos aceitar, cada uma a seu modo.


E o Chico cantava sobre o tempo. Cantava Oração ao Tempo quase todos os dias uma época. Eu pedia pra ele tocar. E pedia pra tocar Tigresa também. Eu lembro dele gritando-quase-em-dor-tão-bonita: "não volte pra casa que aqui é triste, não volte pro mondo onde você não existe". E certa vez ele e a Paula numa meditação inusitada fizeram a louca da vizinha chamar a polícia: trez viaturas, doze policiais e a investigação na casa que de ilegal só tinha mesmo as placas de rua; nenhum assasitado, nenhuma droga.

O que você esperava meu amigo? Andando pelos corredores do CRUSP dá a impressão que de repente você vai surgir com uma roupa estranha e uma nova história maluca pra me contar. A Paula me falou que quando te conheceu você tava comendo uma flor. Chico, eu não vou te esquer nunca. Vá em paz. Conhece o outro lado. E se conseguir, vem tocar Tigresa pra mim uma última vez?!


terça-feira, 16 de setembro de 2014

a vida do sentido

"Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho..."
Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas


Baseado no remoto conforto que o mundo oferece e nas esquivadas luzes que só se criam com fé forte, viver de glórias é (tarefa sempre impossível). E digo isso em tempos todos os que puderem se pensar e espaços todos que se puder saber no planeta - que conhecemos. Mas se sabe que existe uma curva estreita e exata cujo foco só sintoniza em dia de algazarra do coração; e nessa curva adjacente - paralela às intenções da gente - jaz por vezes um fio absoluto de paz e entendimento. Nisso talvez resulte o ápice das meditações, o epicentro das dissertações, o conforto das liturgias, a sabedoria dos vexames.

Se sabia disso, ninguém soube, porém o povo todo indicava que o homem no alto do prédio aparentava ter alinhado o pensamento e o espírito em alguma tradição oculta aos olhos posto que não havia tradução possível no que é humano e no que não é para o seu ímpeto de se atirar ao céu. E da convicção do seu olhar - diziam os mais crentes - se extraía a certeza de que o chão não seria seu destino único - mesmo que indecisos os palpites exitassem numa tendência de algum futuro.

Pularam!!! Os dois. (O homem e o bilhete). (De) (cima) do (edifício). No centro da [cidade]. De (qualquer) cidade. A maioria diz que saiu primeiro a pessoa e depois o papel. Dos trinta segundos de queda até o derradeiro espetáculo sanguíneo os narizes na patota observante farejaram a dúvida sobre as palavras no bilhete mais do que no estrago da morte possível e certa naquele corpo sujo a viajar no vento frio. Como se fim de vida e suicídio tivessem uma explicação já esgotada e consistente pras bandas do misticismo. Nenhum rancor no acontecimento. (Vazio) e espantado tumulto se terminou com um velório precoce direto aos (vermes).

Ninguém sabia de tudo; menos ainda de notícia alguma daquele saboroso princípio (de fel?). Ecoou um silêncio estridente na manchete da hora imediata dando conhecimento ao mundo do conteúdo do papel derramado. Dizia das faltas todas e da mais comprida e complicada - àquela de si. Começava por explanar complexo o desgosto nas lágrimas e no sangue derramado pelas polícias que insistiam em desobedecer as insígnias da pobreza. Sem saber homem de espaço se arranca de quem tá do lado jorrando. Mas não é sempre assim que se resolve o mundo e de coitado nenhum Estado nem governo nem partido nem igreja nem filosofia nem pessoa tem.

Mais ainda contava dos abusos fraudulentos da própria vontade. De se saber mesquinho e também covarde e seguir sua particular violência no monstro citadino. De quem era (a culpa) e quem seria então o algoz de uma memória só de votos (nulos)? Tinha também no pergaminho o relato de infindas reclusões injustas, de delações medíocres, de deflorações amargas. Tiros, gritos, fome, pobreza, cobiça, ignorância, (desterro), angústia.

[Não há jeito simples de explicar a morte de um homem.] (Um) escritor, (um) militante, (um) jornalista, cada [um] pode tentar dizer da sua história pregressa como um quase-não-indigente-cidadão livre cheio de particularidades e paparicos de pessoa completa - mesmo que sem tanto alento. De outro lado se pode dizer das pessoas todas ao redor da história de desesperança que a ganância dos homens provocou fazendo jus a força bruta desta terra.

Mas o arrepio indigesto das palavras do bilhete que só alguns poucos sentiram. Um ou outro lendo mensagem virtual sobre o assunto. É certo dizer que não foi esse, não, o grande efeito. Pra falar bem a verdade grande desse fato-feito, quem soube de razões muito mais medidas foi só mesmo o médico que cuidou da autópsia do corpo. Profissional de muitas gerações ficou chocado ao se deparar com as vísceras da recente criatura.

Nos intestinos, fígado, pâncreas, pulmão, coração, rins, havia inexplicavelmente desenhos aos montes espalhados em cores azuis e verdes com tonalidades brancas. E o Dr. Lucrécio se pasmou em delírio ao notar as imagens; um navio negreiro, um presídio superlotado, uma favela ao esgoto. E mais ainda: uma criança negra com pouca carne sentada no colo de um velho fazendeiro sorridente. Do outro lado tinha também uns tanques de guerra, uns livros queimando na fogueira, imagens de abortos e de inocentes na cadeira elétrica. E no coração falido do ex-humano se estava inscrito um motivo aprazível: "adeus, civilização".

Para Lucrécio não houve igreja e nem porre que curasse o lugar daquela loucura tamanha. E se depois disso nunca mais chegara a léguas próximas de uma mesa de cirurgia ou utensílio desses qualquer por trauma, maior ainda foi a surpresa do seu instinto particular ao receber pelos correios não só um travesseiro confortável como também um estranho livro sem título com capa cinza.

E ao abrir o livro foi que a vida de Lucrécio recomeçou pois nele, recebido três semanas e meia depois do ocorrido, soava um início do modo como se segue e não sei se tenho culhões pra reproduzir de modo fiel: "Ao médico que me entregou de novo a vida; Milagres são invisíveis ao mundo inteiro e só uns poucos podem ver e viver quando dá na telha do mundo ceder. Eis que o que você viu dentro de mim é uma grande história que alguém me contou antes de eu pular do prédio. Mas logo que terminei de ouvir o sujeito desapareceu e em poucos minutos me esqueci da história do mundo e só lembrava que o homem dizia-se {um ser de luz} me trazendo uma mensagem. Agora que estou vivo novamente posso te contar...".

Eu, narrador, não contive minha emoção ao presenciar a campainha tocando, Lucrécio atendendo e se deparando com o homem que tinha rasgado inteiro na autópsia ressuscitado feito Cristo e outros deuses ao que disse então o ex morto: "Olá... Não se espante... Não se explica nem morte e nem vida. Muito menos ressurreição não programada. <Nesse mundo só o que se pode fazer é vomitar luz e pular de parapeitos>. Nem que pra isso seja preciso escrever oito mil canções e quatorze livros. E não se zangue se não compreender agora mas te digo, enfim... Quando se se atira ao céu não se quer morrer; se quer voar".

Dedicado aos partícipes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, aos manifestantes presentes em ato contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo no dia 13 de junho de 2013, à João Guimarães Rosa e a João, um ex-estudante da Universidade de São Paulo falecido após o show do Tom Zé no dia 2 de setembro de 2014.