terça-feira, 16 de setembro de 2014

a vida do sentido

"Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho..."
Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas


Baseado no remoto conforto que o mundo oferece e nas esquivadas luzes que só se criam com fé forte, viver de glórias é (tarefa sempre impossível). E digo isso em tempos todos os que puderem se pensar e espaços todos que se puder saber no planeta - que conhecemos. Mas se sabe que existe uma curva estreita e exata cujo foco só sintoniza em dia de algazarra do coração; e nessa curva adjacente - paralela às intenções da gente - jaz por vezes um fio absoluto de paz e entendimento. Nisso talvez resulte o ápice das meditações, o epicentro das dissertações, o conforto das liturgias, a sabedoria dos vexames.

Se sabia disso, ninguém soube, porém o povo todo indicava que o homem no alto do prédio aparentava ter alinhado o pensamento e o espírito em alguma tradição oculta aos olhos posto que não havia tradução possível no que é humano e no que não é para o seu ímpeto de se atirar ao céu. E da convicção do seu olhar - diziam os mais crentes - se extraía a certeza de que o chão não seria seu destino único - mesmo que indecisos os palpites exitassem numa tendência de algum futuro.

Pularam!!! Os dois. (O homem e o bilhete). (De) (cima) do (edifício). No centro da [cidade]. De (qualquer) cidade. A maioria diz que saiu primeiro a pessoa e depois o papel. Dos trinta segundos de queda até o derradeiro espetáculo sanguíneo os narizes na patota observante farejaram a dúvida sobre as palavras no bilhete mais do que no estrago da morte possível e certa naquele corpo sujo a viajar no vento frio. Como se fim de vida e suicídio tivessem uma explicação já esgotada e consistente pras bandas do misticismo. Nenhum rancor no acontecimento. (Vazio) e espantado tumulto se terminou com um velório precoce direto aos (vermes).

Ninguém sabia de tudo; menos ainda de notícia alguma daquele saboroso princípio (de fel?). Ecoou um silêncio estridente na manchete da hora imediata dando conhecimento ao mundo do conteúdo do papel derramado. Dizia das faltas todas e da mais comprida e complicada - àquela de si. Começava por explanar complexo o desgosto nas lágrimas e no sangue derramado pelas polícias que insistiam em desobedecer as insígnias da pobreza. Sem saber homem de espaço se arranca de quem tá do lado jorrando. Mas não é sempre assim que se resolve o mundo e de coitado nenhum Estado nem governo nem partido nem igreja nem filosofia nem pessoa tem.

Mais ainda contava dos abusos fraudulentos da própria vontade. De se saber mesquinho e também covarde e seguir sua particular violência no monstro citadino. De quem era (a culpa) e quem seria então o algoz de uma memória só de votos (nulos)? Tinha também no pergaminho o relato de infindas reclusões injustas, de delações medíocres, de deflorações amargas. Tiros, gritos, fome, pobreza, cobiça, ignorância, (desterro), angústia.

[Não há jeito simples de explicar a morte de um homem.] (Um) escritor, (um) militante, (um) jornalista, cada [um] pode tentar dizer da sua história pregressa como um quase-não-indigente-cidadão livre cheio de particularidades e paparicos de pessoa completa - mesmo que sem tanto alento. De outro lado se pode dizer das pessoas todas ao redor da história de desesperança que a ganância dos homens provocou fazendo jus a força bruta desta terra.

Mas o arrepio indigesto das palavras do bilhete que só alguns poucos sentiram. Um ou outro lendo mensagem virtual sobre o assunto. É certo dizer que não foi esse, não, o grande efeito. Pra falar bem a verdade grande desse fato-feito, quem soube de razões muito mais medidas foi só mesmo o médico que cuidou da autópsia do corpo. Profissional de muitas gerações ficou chocado ao se deparar com as vísceras da recente criatura.

Nos intestinos, fígado, pâncreas, pulmão, coração, rins, havia inexplicavelmente desenhos aos montes espalhados em cores azuis e verdes com tonalidades brancas. E o Dr. Lucrécio se pasmou em delírio ao notar as imagens; um navio negreiro, um presídio superlotado, uma favela ao esgoto. E mais ainda: uma criança negra com pouca carne sentada no colo de um velho fazendeiro sorridente. Do outro lado tinha também uns tanques de guerra, uns livros queimando na fogueira, imagens de abortos e de inocentes na cadeira elétrica. E no coração falido do ex-humano se estava inscrito um motivo aprazível: "adeus, civilização".

Para Lucrécio não houve igreja e nem porre que curasse o lugar daquela loucura tamanha. E se depois disso nunca mais chegara a léguas próximas de uma mesa de cirurgia ou utensílio desses qualquer por trauma, maior ainda foi a surpresa do seu instinto particular ao receber pelos correios não só um travesseiro confortável como também um estranho livro sem título com capa cinza.

E ao abrir o livro foi que a vida de Lucrécio recomeçou pois nele, recebido três semanas e meia depois do ocorrido, soava um início do modo como se segue e não sei se tenho culhões pra reproduzir de modo fiel: "Ao médico que me entregou de novo a vida; Milagres são invisíveis ao mundo inteiro e só uns poucos podem ver e viver quando dá na telha do mundo ceder. Eis que o que você viu dentro de mim é uma grande história que alguém me contou antes de eu pular do prédio. Mas logo que terminei de ouvir o sujeito desapareceu e em poucos minutos me esqueci da história do mundo e só lembrava que o homem dizia-se {um ser de luz} me trazendo uma mensagem. Agora que estou vivo novamente posso te contar...".

Eu, narrador, não contive minha emoção ao presenciar a campainha tocando, Lucrécio atendendo e se deparando com o homem que tinha rasgado inteiro na autópsia ressuscitado feito Cristo e outros deuses ao que disse então o ex morto: "Olá... Não se espante... Não se explica nem morte e nem vida. Muito menos ressurreição não programada. <Nesse mundo só o que se pode fazer é vomitar luz e pular de parapeitos>. Nem que pra isso seja preciso escrever oito mil canções e quatorze livros. E não se zangue se não compreender agora mas te digo, enfim... Quando se se atira ao céu não se quer morrer; se quer voar".

Dedicado aos partícipes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, aos manifestantes presentes em ato contra o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo no dia 13 de junho de 2013, à João Guimarães Rosa e a João, um ex-estudante da Universidade de São Paulo falecido após o show do Tom Zé no dia 2 de setembro de 2014.   

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